quinta-feira, 23 de abril de 2020

OTÁVIO E A TERRA PLANA


Otávio se considerava intelectualmente uma pessoa acima da média. Por isso, quando o primo porteiro — que era amante de uma senhora rica num condomínio do Lago Sul, em Brasília — morreu trocando um pneu de caminhão e deixou de herança para ele uma pequena fortuna, Otávio decidiu abandonar de vez o trabalho de balconista da loja de peças na Ceilândia Norte e colocar em prática um antigo projeto: provar que a Terra é plana.
Otávio não era dessas pessoas que aceitam qualquer mentira que lhe contam. Pelo contrário, era um estudioso. Desde que conseguira uma conexão de quinze Mega numa promoção de telefonia celular, se tornara um pesquisador — como ele mesmo gostava de se descrever. Foi através do grupo de Whatsapp da família que os temas fundamentais da existência humana começaram a povoar sua mente e despertar sua vontade de elucidar os menos capazes. Tia Hermínia, que era copeira no Ministério da Saúde, havia alertado no grupo para o risco das vacinas depois que recebeu uma mensagem de uma amiga costureira assinada por uma pessoa que tinha um primo que conhecia um médico que tinha tido problemas com vacinas. Foi o primeiro tema que fez Otávio decidir levar suas pesquisas a fundo. Mergulhou nos estudos dos malefícios das vacinas, pesquisando no Google e sites alternativos, fugindo da mídia tradicional e dos sites de publicações científicas, repletos de mentiras, e encampou uma ação sem precedentes no grupo. Sua meta era impedir que as crianças fossem imunizadas, porque descobrira num site patriota de um movimento de libertação do país, que as vacinas causam autismo*. Claro que Otávio foi esperto o suficiente para ignorar todas as demais matérias que explicavam que essa lenda havia surgido pelo médico britânico Andrew Wakefield, numa fraude sobre uma ação coletiva que pretendia extorquir bilhões de dólares dos laboratórios farmacêuticos usando uma falsa pesquisa, com dados falsos sobre pacientes. Ele nunca tocou nesse assunto no grupo, era secundário, uma conspiração da indústria farmacêutica contra o nome do bom doutor Wakefield. Também ignorou que o médico tenha perdido a licença para exercer a medicina e sido julgado e condenado por crime cometido contra a humanidade, tudo invenção de uma mídia fraudulenta e seguidora dos interesses corporativos. Afinal, Otávio era intelectualmente acima da média. Infelizmente, por motivos pessoais — quando já estava em sua viagem pela comprovação da Terra Plana —, Otávio não pode presenciar o que se passou nos anos seguintes quando duas crianças da família morreram de Sarampo e uma terceira teve poliomielite agora usando uma perna mecânica auxiliar, mas tudo sendo atribuído por Dona Francisca à ira divina por pecados cometidos pelos pais, à ausência de oração e um irmão homossexual de Dona Luzia.
Tinha pensado em provar a Terra Plana e suas teorias por outros métodos, Fernão de Magalhães era um terrabolista mentiroso. Que o sol mede realmente cinquenta e um quilômetros de diâmetro (mesma dimensão que a lua) e que funcionava como uma lanterna, iluminando uma parte do planeta a cada momento. Mas achou que isso não seria suficiente. Também pensou em subir acima dos cinco mil quilômetros (altura em que ele acreditava que o sol circula a Terra), mas achou difícil fazer isso sem um equipamento apropriado. Claro que ele ignorou o telescópio Hubble e as pesquisas da NASA, os voos espaciais, os oitenta quilômetros que delimitam o limite entre a Terra e o Espaço. Tudo bobagens e mentiras de pessoas que não conseguem ver a verdade frente a frente. Também pensou em contestar a ridícula Lei da Gravidade de Newton, mesmo sem saber que que ela já fora questionada por um judeu de nome Einstein. Para Otávio, era óbvio que a Terra Plana se elevava por uma força misteriosa a 9,8 metros por segundo ao quadrado, em sentido ascendente eternamente, como se fosse um elevador celestial que não para em nenhum andar.
Em outras oportunidades, em fóruns mais intelectualizados do que o grupo da família onde ele atuava como consultor, Otávio debateu temas mais complexos e menos públicos como o treinamento de Barack Obama pela KGB quando ainda adolescente no Havaí*, e sua eleição ao governo dos Estados Unidos numa ação (felizmente) malsucedida do empresariado milionário mundial imbuídos de patrocinar a ascensão comunista global*. Deliberou sobre outros importantes temas como o incentivo da pedofilia por Freud*, ou o fato de que nunca uma pessoa gay tenha feito qualquer contribuição importante na história da humanidade*. Enquanto planejava sua expedição para provar que a Terra é plana, também discutia temas secundários como a grande mentira do aquecimento global, afinal, como disse o principal filósofo de sua corrente de crenças — um astrólogo idoso que morava nos Estados Unidos e reacendia teorias que já eram piada há mais de vinte anos em países desenvolvidos — acreditar em aquecimento global e fumo passivo era como acreditar em fadas e duendes*. Seguiam-se outras crendices impostas pela mídia e que tomavam seu precioso tempo, mas que precisavam ser combatidas em nome da ciência, como mostrar que na realidade nunca existiu escravidão no Brasil* ou que as Universidades eram um grande antro que jamais fizeram sequer uma contribuição para a ciência ou para o país*.
Nas horas vagas, tendo tantas frentes de batalha para elucidar aqueles que considerava intelectualmente menos providos, pesquisava fontes primárias e confiáveis sobre a planicidade da Terra e a grande conspiração do consórcio mundial para fazer crer os incautos de sua forma bolática. Era tão óbvio! Claro que — em sua busca pela verdade — Otávio encontrou mentiras como a que afirmava que em 276 a.C. Eratóstenes teria feito as primeiras experiências que levariam ao entendimento do formato da Terra. Ignorou que Plutarco, quatro séculos depois, pudesse validar os modelos de Erastótenes, tudo bobagem. Também leu que Copérnico tinha insônia, e sentado na janela de seu quarto à noite, dia após dia, viu as estrelas se moverem e formulou a teoria do heliocentrismo. Imagine! Mas Galileu Galilei, a este sim dava crédito. Ele adorava Galileu e usava seu nome em debates na internet justamente pela mudança de posição de um dos mais famosos físicos-matemáticos da humanidade como comprovação inequívoca de que a Terra é plana. Galileu admitir um erro de interpretação somente quando diante de um tribunal da inquisição em 1616 — em troca de sua vida e excomunhão — era meramente um detalhe.  Otávio também leu — mas não lhe fizeram sentido — as célebres palavras do mesmo Galileu quando foi informado que seu livro fora incluído na lista de livros proibidos pela Igreja Católica “eppur si muove!”, o que nos dias de hoje significaria ironicamente  “a Terra se move!”, querendo a Igreja, Otávio ou qualquer outro terraplanista, quem quer que fosse, o contrário.
Passados dois anos, a proposta da expedição estava concluída. Os fundos estavam arrecadados, e com base em outros pesquisadores, intelectuais, elaboradores terraplanistas ele estava pronto. Assim, munido de sua bússola, um original de um livro escrito por aquele astrólogo idoso que morava nos EUA, uma mochila e um cartão de crédito, em 01 de abril, Otávio partiu na expedição. Estavam presentes seis membros da associação de terraplanistas que contava naquela época com quase dez milhões de membros numa Rede Social. O público que presenciou a história sendo escrita só não foi maior porque um menino de doze anos foi proibido pelo pai de participar sob pena de ficar sem videogame por uma semana, e outros dois membros estavam temporariamente em retiro intelectual numa clínica psiquiátrica.
Otávio imaginava poder navegar até as paredes de gelo de quarenta e cinco metros de altura que cercam a Terra Plana e fazem a contenção dos oceanos (para que a água não escorra para fora da Terra, claro). Depois, navegaria sempre costeando essas paredes até retornar ao ponto principal. Simples, mas perfeito.
Partiu na sua missão numa felicidade incontida. Viajou até a Patagônia, onde pegaria um barco pesqueiro alugado e navegaria até a parede de gelo que cerca a Terra Plana. Mas as coisas não andaram exatamente como ele previu. No caminho, encontrou geleiras com muito mais altura do que os 45 metros da parede da Terra, e imaginou que eram maquetes gigantescas construídas pelo consórcio mundial das grandes potências para defender a mentira da Terra bola e dissuadi-lo. Não se deu por entregue, seguiu em frente. Foram muitos dias de provação contra um mar rebelde. Tudo atribuído ao consórcio maligno que enviava ondas artificiais para naufragar seu pequeno e corajoso barco.
Finalmente depois de muito tempo, Otávio avistou algo à proa! Imaginava serem os paredões que margeiam a Terra Plana, mas na verdade era a costa da África. Refez os cálculos. Iniciou outra viagem, e quando viu estava na Austrália. Alguém boicotava sua jornada! Malditas conspirações! Mais uma tentativa e deparou-se com maravilhosas paredes de gelo, mas eram os Andes chilenos. Com os fundos muito reduzidos e quase sem comunicação com seus grupos de seguidores, decidiu tentar pelo outro lado, margeou o Chile e se lançou ao fim do mundo. Chegou no Havaí. Maldito consórcio! Zarpou do Havaí e atracou no Japão. Do Japão, foi parar na Nova Zelândia, e depois no Vietnã. Partiu furioso do Vietnã e se deparou com Madagascar. Muitos meses depois, nesse vai e vem em busca do fim do mundo, exausto e sem recursos, voltou derrotado para casa a bordo de um cargueiro que supostamente (para seu rancor profundo) fazia a mentirosa volta ao mundo-bola transportando mercadorias de porto em porto navegando sempre para oeste. Ao retornar, foi internado numa casa especializada em tratar pessoas com distúrbios mentais depois de diversos ataques de fúria em praça pública para denunciar o maldito consórcio de milionários comunistas que o impediram de chegar às bordas da Terra Plana. Morreu alguns anos depois, sozinho, jurando aos berros que o astrólogo idoso sempre teve razão, que a Terra era plana, agarrado a um pedaço de papel onde se lia: é verdade esse bilete.
ObservaçãoTodas as afirmações marcadas com * podem ser encontradas no livro “O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota”, de Olavo de Carvalho, mentor intelectual de vários ministros e do atual Presidente da República.