Otávio se considerava intelectualmente uma pessoa
acima da média. Por isso, quando o primo porteiro — que era amante de uma
senhora rica num condomínio do Lago Sul, em Brasília — morreu trocando um pneu
de caminhão e deixou de herança para ele uma pequena fortuna, Otávio decidiu
abandonar de vez o trabalho de balconista da loja de peças na Ceilândia Norte e
colocar em prática um antigo projeto: provar que a Terra é plana.
Otávio não era dessas pessoas que aceitam qualquer
mentira que lhe contam. Pelo contrário, era um estudioso. Desde que conseguira
uma conexão de quinze Mega numa promoção de telefonia celular, se tornara um
pesquisador — como ele mesmo gostava de se descrever. Foi através do grupo de
Whatsapp da família que os temas fundamentais da existência humana começaram a
povoar sua mente e despertar sua vontade de elucidar os menos capazes. Tia
Hermínia, que era copeira no Ministério da Saúde, havia alertado no grupo para
o risco das vacinas depois que recebeu uma mensagem de uma amiga costureira
assinada por uma pessoa que tinha um primo que conhecia um médico que tinha
tido problemas com vacinas. Foi o primeiro tema que fez Otávio decidir levar suas
pesquisas a fundo. Mergulhou nos estudos dos malefícios das vacinas, pesquisando
no Google e sites alternativos, fugindo da mídia tradicional e dos sites de
publicações científicas, repletos de mentiras, e encampou uma ação sem
precedentes no grupo. Sua meta era impedir que as crianças fossem imunizadas,
porque descobrira num site patriota de um movimento de libertação do país, que
as vacinas causam autismo*. Claro que Otávio foi esperto o suficiente para ignorar
todas as demais matérias que explicavam que essa lenda havia surgido pelo
médico britânico Andrew Wakefield, numa fraude sobre uma ação coletiva que
pretendia extorquir bilhões de dólares dos laboratórios farmacêuticos usando uma
falsa pesquisa, com dados falsos sobre pacientes. Ele nunca tocou nesse assunto
no grupo, era secundário, uma conspiração da indústria farmacêutica contra o
nome do bom doutor Wakefield. Também ignorou que o médico tenha perdido a
licença para exercer a medicina e sido julgado e condenado por crime cometido
contra a humanidade, tudo invenção de uma mídia fraudulenta e seguidora dos
interesses corporativos. Afinal, Otávio era intelectualmente acima da média. Infelizmente,
por motivos pessoais — quando já estava em sua viagem pela comprovação da Terra
Plana —, Otávio não pode presenciar o que se passou nos anos seguintes quando duas
crianças da família morreram de Sarampo e uma terceira teve poliomielite agora
usando uma perna mecânica auxiliar, mas tudo sendo atribuído por Dona Francisca
à ira divina por pecados cometidos pelos pais, à ausência de oração e um irmão
homossexual de Dona Luzia.
Tinha pensado em provar a Terra Plana e suas
teorias por outros métodos, Fernão de Magalhães era um terrabolista mentiroso.
Que o sol mede realmente cinquenta e um quilômetros de diâmetro (mesma dimensão
que a lua) e que funcionava como uma lanterna, iluminando uma parte do planeta
a cada momento. Mas achou que isso não seria suficiente. Também pensou em subir
acima dos cinco mil quilômetros (altura em que ele acreditava que o sol circula
a Terra), mas achou difícil fazer isso sem um equipamento apropriado. Claro que
ele ignorou o telescópio Hubble e as pesquisas da NASA, os voos espaciais, os
oitenta quilômetros que delimitam o limite entre a Terra e o Espaço. Tudo
bobagens e mentiras de pessoas que não conseguem ver a verdade frente a frente.
Também pensou em contestar a ridícula Lei da Gravidade de Newton, mesmo sem
saber que que ela já fora questionada por um judeu de nome Einstein. Para
Otávio, era óbvio que a Terra Plana se elevava por uma força misteriosa a 9,8
metros por segundo ao quadrado, em sentido ascendente eternamente, como se
fosse um elevador celestial que não para em nenhum andar.
Em outras
oportunidades, em fóruns mais intelectualizados do que o grupo da família onde
ele atuava como consultor, Otávio debateu temas mais complexos e menos públicos
como o treinamento de Barack Obama pela KGB quando ainda adolescente no Havaí*,
e sua eleição ao governo dos Estados Unidos numa ação (felizmente) malsucedida
do empresariado milionário mundial imbuídos de patrocinar a ascensão comunista
global*. Deliberou sobre outros importantes temas como o incentivo da pedofilia
por Freud*, ou o fato de que nunca uma pessoa gay tenha feito qualquer
contribuição importante na história da humanidade*. Enquanto planejava sua
expedição para provar que a Terra é plana, também discutia temas secundários
como a grande mentira do aquecimento global, afinal, como disse o principal
filósofo de sua corrente de crenças — um astrólogo idoso que morava nos Estados
Unidos e reacendia teorias que já eram piada há mais de vinte anos em países
desenvolvidos — acreditar em aquecimento global e fumo passivo era como
acreditar em fadas e duendes*. Seguiam-se outras crendices impostas pela mídia
e que tomavam seu precioso tempo, mas que precisavam ser combatidas em nome da
ciência, como mostrar que na realidade nunca existiu escravidão no Brasil* ou
que as Universidades eram um grande antro que jamais fizeram sequer uma contribuição
para a ciência ou para o país*.
Nas horas vagas, tendo tantas frentes de batalha
para elucidar aqueles que considerava intelectualmente menos providos, pesquisava
fontes primárias e confiáveis sobre a planicidade da Terra e a grande
conspiração do consórcio mundial para fazer crer os incautos de sua forma bolática.
Era tão óbvio! Claro que — em sua busca pela verdade — Otávio encontrou
mentiras como a que afirmava que em 276 a.C. Eratóstenes teria feito as
primeiras experiências que levariam ao entendimento do formato da Terra.
Ignorou que Plutarco, quatro séculos depois, pudesse validar os modelos de Erastótenes,
tudo bobagem. Também leu que Copérnico tinha insônia, e sentado na janela de
seu quarto à noite, dia após dia, viu as estrelas se moverem e formulou a
teoria do heliocentrismo. Imagine! Mas Galileu Galilei, a este sim dava
crédito. Ele adorava Galileu e usava seu nome em debates na internet justamente
pela mudança de posição de um dos mais famosos físicos-matemáticos da
humanidade como comprovação inequívoca de que a Terra é plana. Galileu admitir
um erro de interpretação somente quando diante de um tribunal da inquisição em
1616 — em troca de sua vida e excomunhão — era meramente um detalhe. Otávio também leu — mas não lhe fizeram
sentido — as célebres palavras do mesmo Galileu quando foi informado que seu
livro fora incluído na lista de livros proibidos pela Igreja Católica “eppur si
muove!”, o que nos dias de hoje significaria ironicamente “a Terra se move!”, querendo a Igreja, Otávio
ou qualquer outro terraplanista, quem quer que fosse, o contrário.
Passados dois anos, a proposta da expedição estava
concluída. Os fundos estavam arrecadados, e com base em outros pesquisadores,
intelectuais, elaboradores terraplanistas ele estava pronto. Assim, munido de
sua bússola, um original de um livro escrito por aquele astrólogo idoso que
morava nos EUA, uma mochila e um cartão de crédito, em 01 de abril, Otávio
partiu na expedição. Estavam presentes seis membros da associação de terraplanistas
que contava naquela época com quase dez milhões de membros numa Rede Social. O
público que presenciou a história sendo escrita só não foi maior porque um
menino de doze anos foi proibido pelo pai de participar sob pena de ficar sem
videogame por uma semana, e outros dois membros estavam temporariamente em retiro
intelectual numa clínica psiquiátrica.
Otávio imaginava poder navegar até as paredes de
gelo de quarenta e cinco metros de altura que cercam a Terra Plana e fazem a
contenção dos oceanos (para que a água não escorra para fora da Terra, claro).
Depois, navegaria sempre costeando essas paredes até retornar ao ponto
principal. Simples, mas perfeito.
Partiu na sua missão numa felicidade incontida. Viajou
até a Patagônia, onde pegaria um barco pesqueiro alugado e navegaria até a
parede de gelo que cerca a Terra Plana. Mas as coisas não andaram exatamente como
ele previu. No caminho, encontrou geleiras com muito mais altura do que os 45
metros da parede da Terra, e imaginou que eram maquetes gigantescas construídas
pelo consórcio mundial das grandes potências para defender a mentira da Terra bola
e dissuadi-lo. Não se deu por entregue, seguiu em frente. Foram muitos dias de
provação contra um mar rebelde. Tudo atribuído ao consórcio maligno que enviava
ondas artificiais para naufragar seu pequeno e corajoso barco.
Finalmente depois
de muito tempo, Otávio avistou algo à proa! Imaginava serem os paredões que
margeiam a Terra Plana, mas na verdade era a costa da África. Refez os
cálculos. Iniciou outra viagem, e quando viu estava na Austrália. Alguém boicotava
sua jornada! Malditas conspirações! Mais uma tentativa e deparou-se com
maravilhosas paredes de gelo, mas eram os Andes chilenos. Com os fundos muito
reduzidos e quase sem comunicação com seus grupos de seguidores, decidiu tentar
pelo outro lado, margeou o Chile e se lançou ao fim do mundo. Chegou no Havaí.
Maldito consórcio! Zarpou do Havaí e atracou no Japão. Do Japão, foi parar na
Nova Zelândia, e depois no Vietnã. Partiu furioso do Vietnã e se deparou com Madagascar.
Muitos meses depois, nesse vai e vem em busca do fim do mundo, exausto e sem
recursos, voltou derrotado para casa a bordo de um cargueiro que supostamente
(para seu rancor profundo) fazia a mentirosa volta ao mundo-bola transportando
mercadorias de porto em porto navegando sempre para oeste. Ao retornar, foi
internado numa casa especializada em tratar pessoas com distúrbios mentais
depois de diversos ataques de fúria em praça pública para denunciar o maldito
consórcio de milionários comunistas que o impediram de chegar às bordas da
Terra Plana. Morreu alguns anos depois, sozinho, jurando aos berros que o
astrólogo idoso sempre teve razão, que a Terra era plana, agarrado a um pedaço de
papel onde se lia: é verdade esse bilete.
Observação – Todas as afirmações marcadas com * podem ser
encontradas no livro “O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota”,
de Olavo de Carvalho, mentor intelectual de vários ministros e do atual
Presidente da República.
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