segunda-feira, 27 de julho de 2020

VOCÊ SABE COM QUEM VOCÊ TÁ FALANDO?

— Você sabe com quem você tá falando? — Perguntou o senhor gordo e grisalho, metido numa camiseta apertada daquelas que a gente usa pra dormir, calção folgado e tênis zero quilômetro.
— Não, senhor. Não sei — respondeu o policial calmamente.
— Pois eu sou desembargador!
— E eu sou policial. Como representante do poder público, eu fico feliz pelo senhor ter tido oportunidade e sucesso na vida, mas aqui na rua o senhor tem que usar a máscara. Tem um Decreto, por causa desse vírus que está aí, sabe?
— Decreto o caralho! Vou por porra de máscara nenhuma! Você não tem ideia de com quem você tá falando, seu analfabeto! — Gritava o idoso barrigudo na camiseta apertada, de vez em quando puxando o calção para cima já que a barriga insistia em meter ele para baixo.
— Eu não sei com quem estou falando porque o senhor ainda não me disse sua graça, mas o meu nome é Heitor, tá vendo aqui? Aqui ó... — apontando tranquilamente para o nome preso na farda com velcro. — Eu sou o soldado Heitor, prazer. E o cidadão? É quem?
— Cidadão porra nenhuma! Não sou cidadão porra nenhuma! Sou desembargador. Você sabe quem eu sou? Sabe?
O soldado Heitor se vira para dentro da viatura onde outro praça está consultando a internet no celular.
— Soldado Tavares! O cidadão aqui não sabe quem é. Você tem alguma ocorrência de idoso perdido aí?
— Negativo. Zero ocorrência de idoso perdido.
— Pois é cidadão — retoma o Heitor para o desembargador —, o senhor não lembra seu nome, mas aqui na rua precisa usar máscara, positivo? Mesmo o senhor estando com esse problema de memória, vou ter que lhe passar uma notificação que o senhor pode pagar na internet, banco ou lotérica.
— Vou pagar na puta que o pariu! Vou pagar porra nenhuma! Eu sou amigo do Secretário de Segurança, vou ligar pra ele e você vai se fuder, seu pobretão!
— Infelizmente cidadão, eu não tenho o número do Secretário de Segurança, mas deixa ver aqui — se vira de novo para a viatura. — Ô, Tavares! Você tem aí o número do Secretário de Segurança? O idoso diz que vai ligar para ele!
— Negativo.
— Pois é cidadão — volta o Heitor —, infelizmente não estamos tendo o número do Secretário. Mas se o senhor se lembrar do nome do seu cuidador podemos ajudar o cidadão a voltar pra casa.
— Cidadão o caralho! Já te falei que eu não sou cidadão porra nenhuma! Eu tenho greencard! Vou ligar aqui, você vai se fuder, seu praça de merda! — O velho está vermelho de raiva, pega o celular, aperta uns botões e põe no viva- voz, alguém atende do outro lado.
— Buarque, pois não?
— Opa, Buarque! — Começa o senhor idoso mudando o tom da voz, agora demonstrando alguma educação e sugerindo uma proximidade intimidadora com o Buarque do telefone, puxando o calção para cima e com o olhar vitorioso em direção ao soldado Heitor. O soldado continua com o ar entediado de quem já viu esse filme, escrevendo a multa no talão. — O Secretário está aí?
— Sim senhor, o secretário sou eu, o Buarque.
— Não, não... — corrige sorridente o desembargador — o de Segurança.
— Desculpa cidadão, mas o senhor deseja falar com o secretário ou com o segurança? O secretário sou eu mesmo, o Buarque, e o segurança que está no plantão hoje é o Roque.
Silêncio constrangedor, e o Heitor meneia a cabeça concordando com o Buarque porque a pergunta tinha mesmo ficado dúbia. O velho respira fundo pensando que esse aspone de merda só pode estar de sacanagem com ele.
— Quero falar com o Secretário de Segurança, por favor — tenta educadamente num esforço derradeiro, se contendo, afinal, ele não é cidadão porra nenhuma, é desembargador, cacete!
— E quem deseja falar?
— O desembargador, porra! Escuta rapaz, você sabe com quem você tá falando? Porra! Eu sou desembargador!
— Cidadão, aí fica difícil... primeiro, o senhor não sabe com quem quer falar; depois o senhor quer falar com o Secretário, mas nem sabe quem o senhor é. E falando “porra” não vai dar, não tem como passar para o Secretário falando palavra de baixo calão, compreende? Questão de protocolo. Deixa ver se posso ajudar o senhor. O senhor conseguiu ligar sozinho ou tem alguém aí que ajudou o senhor?
— Positivo operante! — Intervém o policial para desespero do desembargador. — Soldado Heitor, bom dia, doutor Buarque.
— Soldado Heitor? Sério? Ah... vai dizer que você é o Heitor goleiro lá da pelada do Tizinho?
— Esse mesmo, positivo. Você não seria o Buarque churrasqueiro, seria?
— Eu mesmo! Rapaz! Quanto tempo! — Explode de felicidade o Buarque churrasqueiro. — Você nunca mais apareceu? O que foi? Prendendo muito vagabundo?
— Positivo! E também machuquei a mão arrumando o telhado lá em casa, tou dando um tempo. Deixa te falar... tem aqui com um idoso que não sabe quem é. Ele insistiu em ligar aí.
— Idoso o cacete! — grita o desembargador, agora em francês, já que ele fala várias línguas, mas não usa máscara na rua. — Analphabète!
— Eita! — fala Buarque. — O velho tá doidão — e solta uma gargalhada ao telefone.
— Chama a porra do Secretário seu merde! Ele me conhece! Eu sou poliglota! La secrátaire me connaît! Diz que é o desembargador que foi no casamento da filha dele! Eu falo francês, porra!
— Ô, Heitor! Vou chamar o Secretário ali pra ver se livro você dessa mala, mas em troca você tem que prometer que vai voltar pra pelada no sábado.
— Combinado, volto sim. Abração!
Instantes de silêncio e o Heitor pisca um olho demonstrando cumplicidade para o baixinho gordinho grisalho de calção caindo.
— Na verdade, a patroa invocou com o futebol e estou dando um tempo...
Uma voz sorridente e política aparece do outro lado da ligação
— Alô, bom dia!
— Bom dia, Secretário! Secretário, aqui quem fala é o desembargador...
— Desembargador?  — O Secretário interrompe, aparentemente empolgado.
— Isso, o que foi no casamento da sua filha, Secretário.
— Desembargador? Ô meu amigo! Há quanto tempo! Em que posso lhe ser útil?
— Pois é, Secretário, eu estou aqui com um soldado da PM analfabeto querendo me dar uma multa porque eu estava dando uma caminhada na orla sem máscara. Só tem eu na praia, Secretário. Ele não está entendendo.
— Ah... que coisa, mas o senhor não morre tão cedo, outro dia minha esposa ainda falou no senhor. O desembargador Silveira faz tempo que não vem aqui em casa...
— Não, Secretário, não é o desembargador Silveira não, é o outro desembargador.
— Outro? Que outro? — O Secretário parece confuso.
— O outro, Secretário, o outro, porra! Então... o senhor lembrou? Você sabe com quem está falando, Secretário?
— Desculpa, mas não estou lhe entendendo. Deixa eu falar com o policial, por favor?
— Toma aqui — o velho entrega o celular que está no viva-voz para o policial —, você vai se fuder agora, fala aí — diz confiante de que o Secretário está com ele.
— Pois não? Soldado Heitor ao seu dispor. Em que posso ajudar?
—Soldado Heitor? Ué?! Eu conheço um soldado Heitor. Você não foi segurança no casamento da Ritinha?
— Eu mesmo Secretário. Que coincidência boa reencontrar com o doutor!
— Ah... não acredito. Quanto tempo Heitor... como que você tá rapaz?
— Tou bem, obrigado. E dona Ritinha, Secretário? Tá feliz de casamento novo? Aquela menina é um doce, Secretário, vale ouro.
— Vale ouro, sim... vale ouro — o Secretário parece orgulhoso da Ritinha. — Escuta, meu querido, estou vendo que você está com um problemão aí com esse cidadão que tá meio confuso, mas decreto é decreto, né? Faz o seguinte, passa a multa para esse sujeito e se ele resistir, fazer o que? Pode recolher, combinado? E vê se aparece outra hora para gente bater um samba!
— Pode deixar Secretário. O senhor por favor manda um abraço para dona Dulce, diz que o tal de “Bife Borbulhom” que ela ensinou pra Joana tá fazendo maior sucesso lá na comunidade, só que o pessoal chama de carne de panela de gringo! — O Secretário solta uma gargalhada, manda um abraço para ele e outro para a patroa e se despede. Heitor devolve o telefone última geração comprado em Miami para o desembargador que está corado.
— Alô? Alô? Secretário... filho da puta, desligou.
— E então cidadão? — Recomeça o santo Heitor. — Estou aqui finalizando sua multa...
O velho explode de novo.
— Cidadão o caralho! Pra você eu sou doutor, seu bosta!
— Eu sei que o senhor está meio confuso, mas tem que se decidir, ou é desembargador ou médico, os dois fica difícil, assim a gente não vai poder ajudar o senhor.
— Daqui a pouco vai dizer que é astronauta! — Grita de dentro da viatura o Tavares.
— Tavares, por favor, não sacaneia o velhinho... o cara tá com problema... — e recomeça. —Faz um esforço que o senhor lembra quem que cuida do senhor, enquanto isso toma aqui sua multa...
O desembargador pega a multa, rasga, amassa e joga em cima do PM. Bem nesse momento estaciona outra viatura que passava lentamente.
— Tudo certo aí, Heitor? — É o Tenente Rodrigues, manga curta dobrada mostrando o bíceps, braço para fora da viatura tatuado com faca e caveira, boina quebrada na testa, Ray-ban espelhado no bolso da camisa.
— Bom dia, Tenente. Tudo tranquilo? Estou aqui aplicando uma multa nesse idoso aqui, sem máscara... o covid, sabe?
O gordinho sente uma pontada de esperança de enquadrar o soldado.
— Tenente, por favor, eu gostaria que o senhor intervisse aqui?
O Tenente desce da viatura ajeitando a boina e com uma cara severa. Olha para os tênis novinhos do gordinho desembargador.
— Rasgou multa, é? Tá bem espertinho pra quem tá perdido, né?! História suspeita essa Heitor... E esse tênis, amigo? Conseguiu onde? — Caminha estufando o peito para cima do velho.
— Tênis? Que tênis? — O desembargador olha para os próprios pés com seu tênis novinho que custou um salário mínimo e ele está estreando hoje no calçadão da orla.
— Esse aí, cidadão — aponta para os tênis. — Tu não tá com cara de quem pode comprar um tênis desse. Me fala. Conseguiu onde esse tênis, parceiro? Fala aí que eu vou lá comprar um também. Tá barato? Fala aê — Tom ameaçador, se vira para o Heitor. — Esse tênis tá estranho nesse gordinho, Heitor, esse tênis aí tá com cara ser de gringo. Você identificou o cidadão?
— Negativo, Tenente. Ele diz que não sabe quem é e fica perguntando pra mim se eu sei.
— Não é isso, Tenente — o desembargador tenta explicar, agora todo suado —, o senhor não está entendendo, veja bem, olha pra mim. O senhor sabe com quem o senhor está falando?
O Tenente olha de cima a baixo o baixinho esportista de gel no cabelo grisalho, calção folgado e camiseta de dormir, com tênis zero bala.
— “Não tou entendendo?” — Altera a voz. — Não tou entendendo? Vou te falar o que eu não tou entendendo: é um sujeito molambento desses com um tênis desse daí? Pegou dum playboy, foi? Onde que tu arrumou esse tênis, fala aí senão a coisa pode dar ruim pro teu lado, parceiro! — Ameaça, já segurando no braço roliço do desembargador que agora está vermelho, suado e quase cagado.
— Calma, Tenente — intervém o Heitor pacificando. — Mexe com isso não, pode deixar a situação comigo que está sob controle — afirma. — Pode deixar que eu tou me entendendo com o “desembargador” (fala dando uma piscada de olho para o Tenente).
— Tá certo, Heitor. Tá certo, eu vou pegar leve porque tou indo atender um 11340... — o Tenente, sério.  — Mas se o governador aí der muito trabalho pode recolher lá no abrigo da Prefeitura. Tá cheio de gente importante lá, tem corregedor, presidente, vereador... ele vai se sentir em casa.
O Tenente dá uma última olhada nos tênis e volta para a viatura.
— Mas se eu fosse você apertava essa história do tênis, aí tem! Copiou?
A viatura vai embora. Heitor terminou o trabalho, e com a paciência que Deus lhe deu, finaliza a ocorrência.
— Bom, cidadão, eu vou liberar o senhor mesmo com o senhor tendo me chamado de analfabeto, pobretão, praça de merda, mandado me fuder, ir à merda e ofender minha mãe, Positivo?
O desembargador não diz nada, perdeu toda a coragem com a visão do braço tatuado do Tenente e está com cara de guri cagado.
— Mas, cidadão... — Heitor chama com ar irônico no rosto — se o cidadão precisar de ajuda pra ir pra casa, estamos aqui para servir. Tenha um ótimo dia e não esqueça da máscara, tem um vírus por aí matando até desembargador, sabe?
Heitor vira as costas e volta para a viatura.
— Achei que você ia enquadrar esse. Amoleceu? — Pergunta o Tavares.
— Nada — afirma o Heitor. No fim das contas, acho que era só outro doidão. Agora, veja você se um sujeito mal-educado e escroto daqueles pode algum dia ser desembargador... bem que o Tenente suspeitou, é capaz mesmo de ter treta naquele tênis.





 [A1]

quinta-feira, 23 de abril de 2020

OTÁVIO E A TERRA PLANA


Otávio se considerava intelectualmente uma pessoa acima da média. Por isso, quando o primo porteiro — que era amante de uma senhora rica num condomínio do Lago Sul, em Brasília — morreu trocando um pneu de caminhão e deixou de herança para ele uma pequena fortuna, Otávio decidiu abandonar de vez o trabalho de balconista da loja de peças na Ceilândia Norte e colocar em prática um antigo projeto: provar que a Terra é plana.
Otávio não era dessas pessoas que aceitam qualquer mentira que lhe contam. Pelo contrário, era um estudioso. Desde que conseguira uma conexão de quinze Mega numa promoção de telefonia celular, se tornara um pesquisador — como ele mesmo gostava de se descrever. Foi através do grupo de Whatsapp da família que os temas fundamentais da existência humana começaram a povoar sua mente e despertar sua vontade de elucidar os menos capazes. Tia Hermínia, que era copeira no Ministério da Saúde, havia alertado no grupo para o risco das vacinas depois que recebeu uma mensagem de uma amiga costureira assinada por uma pessoa que tinha um primo que conhecia um médico que tinha tido problemas com vacinas. Foi o primeiro tema que fez Otávio decidir levar suas pesquisas a fundo. Mergulhou nos estudos dos malefícios das vacinas, pesquisando no Google e sites alternativos, fugindo da mídia tradicional e dos sites de publicações científicas, repletos de mentiras, e encampou uma ação sem precedentes no grupo. Sua meta era impedir que as crianças fossem imunizadas, porque descobrira num site patriota de um movimento de libertação do país, que as vacinas causam autismo*. Claro que Otávio foi esperto o suficiente para ignorar todas as demais matérias que explicavam que essa lenda havia surgido pelo médico britânico Andrew Wakefield, numa fraude sobre uma ação coletiva que pretendia extorquir bilhões de dólares dos laboratórios farmacêuticos usando uma falsa pesquisa, com dados falsos sobre pacientes. Ele nunca tocou nesse assunto no grupo, era secundário, uma conspiração da indústria farmacêutica contra o nome do bom doutor Wakefield. Também ignorou que o médico tenha perdido a licença para exercer a medicina e sido julgado e condenado por crime cometido contra a humanidade, tudo invenção de uma mídia fraudulenta e seguidora dos interesses corporativos. Afinal, Otávio era intelectualmente acima da média. Infelizmente, por motivos pessoais — quando já estava em sua viagem pela comprovação da Terra Plana —, Otávio não pode presenciar o que se passou nos anos seguintes quando duas crianças da família morreram de Sarampo e uma terceira teve poliomielite agora usando uma perna mecânica auxiliar, mas tudo sendo atribuído por Dona Francisca à ira divina por pecados cometidos pelos pais, à ausência de oração e um irmão homossexual de Dona Luzia.
Tinha pensado em provar a Terra Plana e suas teorias por outros métodos, Fernão de Magalhães era um terrabolista mentiroso. Que o sol mede realmente cinquenta e um quilômetros de diâmetro (mesma dimensão que a lua) e que funcionava como uma lanterna, iluminando uma parte do planeta a cada momento. Mas achou que isso não seria suficiente. Também pensou em subir acima dos cinco mil quilômetros (altura em que ele acreditava que o sol circula a Terra), mas achou difícil fazer isso sem um equipamento apropriado. Claro que ele ignorou o telescópio Hubble e as pesquisas da NASA, os voos espaciais, os oitenta quilômetros que delimitam o limite entre a Terra e o Espaço. Tudo bobagens e mentiras de pessoas que não conseguem ver a verdade frente a frente. Também pensou em contestar a ridícula Lei da Gravidade de Newton, mesmo sem saber que que ela já fora questionada por um judeu de nome Einstein. Para Otávio, era óbvio que a Terra Plana se elevava por uma força misteriosa a 9,8 metros por segundo ao quadrado, em sentido ascendente eternamente, como se fosse um elevador celestial que não para em nenhum andar.
Em outras oportunidades, em fóruns mais intelectualizados do que o grupo da família onde ele atuava como consultor, Otávio debateu temas mais complexos e menos públicos como o treinamento de Barack Obama pela KGB quando ainda adolescente no Havaí*, e sua eleição ao governo dos Estados Unidos numa ação (felizmente) malsucedida do empresariado milionário mundial imbuídos de patrocinar a ascensão comunista global*. Deliberou sobre outros importantes temas como o incentivo da pedofilia por Freud*, ou o fato de que nunca uma pessoa gay tenha feito qualquer contribuição importante na história da humanidade*. Enquanto planejava sua expedição para provar que a Terra é plana, também discutia temas secundários como a grande mentira do aquecimento global, afinal, como disse o principal filósofo de sua corrente de crenças — um astrólogo idoso que morava nos Estados Unidos e reacendia teorias que já eram piada há mais de vinte anos em países desenvolvidos — acreditar em aquecimento global e fumo passivo era como acreditar em fadas e duendes*. Seguiam-se outras crendices impostas pela mídia e que tomavam seu precioso tempo, mas que precisavam ser combatidas em nome da ciência, como mostrar que na realidade nunca existiu escravidão no Brasil* ou que as Universidades eram um grande antro que jamais fizeram sequer uma contribuição para a ciência ou para o país*.
Nas horas vagas, tendo tantas frentes de batalha para elucidar aqueles que considerava intelectualmente menos providos, pesquisava fontes primárias e confiáveis sobre a planicidade da Terra e a grande conspiração do consórcio mundial para fazer crer os incautos de sua forma bolática. Era tão óbvio! Claro que — em sua busca pela verdade — Otávio encontrou mentiras como a que afirmava que em 276 a.C. Eratóstenes teria feito as primeiras experiências que levariam ao entendimento do formato da Terra. Ignorou que Plutarco, quatro séculos depois, pudesse validar os modelos de Erastótenes, tudo bobagem. Também leu que Copérnico tinha insônia, e sentado na janela de seu quarto à noite, dia após dia, viu as estrelas se moverem e formulou a teoria do heliocentrismo. Imagine! Mas Galileu Galilei, a este sim dava crédito. Ele adorava Galileu e usava seu nome em debates na internet justamente pela mudança de posição de um dos mais famosos físicos-matemáticos da humanidade como comprovação inequívoca de que a Terra é plana. Galileu admitir um erro de interpretação somente quando diante de um tribunal da inquisição em 1616 — em troca de sua vida e excomunhão — era meramente um detalhe.  Otávio também leu — mas não lhe fizeram sentido — as célebres palavras do mesmo Galileu quando foi informado que seu livro fora incluído na lista de livros proibidos pela Igreja Católica “eppur si muove!”, o que nos dias de hoje significaria ironicamente  “a Terra se move!”, querendo a Igreja, Otávio ou qualquer outro terraplanista, quem quer que fosse, o contrário.
Passados dois anos, a proposta da expedição estava concluída. Os fundos estavam arrecadados, e com base em outros pesquisadores, intelectuais, elaboradores terraplanistas ele estava pronto. Assim, munido de sua bússola, um original de um livro escrito por aquele astrólogo idoso que morava nos EUA, uma mochila e um cartão de crédito, em 01 de abril, Otávio partiu na expedição. Estavam presentes seis membros da associação de terraplanistas que contava naquela época com quase dez milhões de membros numa Rede Social. O público que presenciou a história sendo escrita só não foi maior porque um menino de doze anos foi proibido pelo pai de participar sob pena de ficar sem videogame por uma semana, e outros dois membros estavam temporariamente em retiro intelectual numa clínica psiquiátrica.
Otávio imaginava poder navegar até as paredes de gelo de quarenta e cinco metros de altura que cercam a Terra Plana e fazem a contenção dos oceanos (para que a água não escorra para fora da Terra, claro). Depois, navegaria sempre costeando essas paredes até retornar ao ponto principal. Simples, mas perfeito.
Partiu na sua missão numa felicidade incontida. Viajou até a Patagônia, onde pegaria um barco pesqueiro alugado e navegaria até a parede de gelo que cerca a Terra Plana. Mas as coisas não andaram exatamente como ele previu. No caminho, encontrou geleiras com muito mais altura do que os 45 metros da parede da Terra, e imaginou que eram maquetes gigantescas construídas pelo consórcio mundial das grandes potências para defender a mentira da Terra bola e dissuadi-lo. Não se deu por entregue, seguiu em frente. Foram muitos dias de provação contra um mar rebelde. Tudo atribuído ao consórcio maligno que enviava ondas artificiais para naufragar seu pequeno e corajoso barco.
Finalmente depois de muito tempo, Otávio avistou algo à proa! Imaginava serem os paredões que margeiam a Terra Plana, mas na verdade era a costa da África. Refez os cálculos. Iniciou outra viagem, e quando viu estava na Austrália. Alguém boicotava sua jornada! Malditas conspirações! Mais uma tentativa e deparou-se com maravilhosas paredes de gelo, mas eram os Andes chilenos. Com os fundos muito reduzidos e quase sem comunicação com seus grupos de seguidores, decidiu tentar pelo outro lado, margeou o Chile e se lançou ao fim do mundo. Chegou no Havaí. Maldito consórcio! Zarpou do Havaí e atracou no Japão. Do Japão, foi parar na Nova Zelândia, e depois no Vietnã. Partiu furioso do Vietnã e se deparou com Madagascar. Muitos meses depois, nesse vai e vem em busca do fim do mundo, exausto e sem recursos, voltou derrotado para casa a bordo de um cargueiro que supostamente (para seu rancor profundo) fazia a mentirosa volta ao mundo-bola transportando mercadorias de porto em porto navegando sempre para oeste. Ao retornar, foi internado numa casa especializada em tratar pessoas com distúrbios mentais depois de diversos ataques de fúria em praça pública para denunciar o maldito consórcio de milionários comunistas que o impediram de chegar às bordas da Terra Plana. Morreu alguns anos depois, sozinho, jurando aos berros que o astrólogo idoso sempre teve razão, que a Terra era plana, agarrado a um pedaço de papel onde se lia: é verdade esse bilete.
ObservaçãoTodas as afirmações marcadas com * podem ser encontradas no livro “O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota”, de Olavo de Carvalho, mentor intelectual de vários ministros e do atual Presidente da República.