— Você sabe com quem você tá falando? — Perguntou o senhor gordo e grisalho,
metido numa camiseta apertada daquelas que a gente usa pra dormir, calção
folgado e tênis zero quilômetro.
— Não, senhor. Não sei — respondeu o policial calmamente.
— Pois eu sou desembargador!
— E eu sou policial. Como representante do poder público, eu fico feliz
pelo senhor ter tido oportunidade e sucesso na vida, mas aqui na rua o senhor
tem que usar a máscara. Tem um Decreto, por causa desse vírus que está aí,
sabe?
— Decreto o caralho! Vou por porra de máscara nenhuma! Você não tem ideia
de com quem você tá falando, seu analfabeto! — Gritava o idoso barrigudo na
camiseta apertada, de vez em quando puxando o calção para cima já que a barriga
insistia em meter ele para baixo.
— Eu não sei com quem estou falando porque o senhor ainda não me disse sua
graça, mas o meu nome é Heitor, tá vendo aqui? Aqui ó... — apontando tranquilamente
para o nome preso na farda com velcro. — Eu sou o soldado Heitor, prazer. E o
cidadão? É quem?
— Cidadão porra nenhuma! Não sou cidadão porra nenhuma! Sou
desembargador. Você sabe quem eu sou? Sabe?
O soldado Heitor se vira para dentro da viatura onde outro praça está
consultando a internet no celular.
— Soldado Tavares! O cidadão aqui não sabe quem é. Você tem alguma ocorrência
de idoso perdido aí?
— Negativo. Zero ocorrência de idoso perdido.
— Pois é cidadão — retoma o Heitor para o desembargador —, o senhor não
lembra seu nome, mas aqui na rua precisa usar máscara, positivo? Mesmo o senhor
estando com esse problema de memória, vou ter que lhe passar uma notificação
que o senhor pode pagar na internet, banco ou lotérica.
— Vou pagar na puta que o pariu! Vou pagar porra nenhuma! Eu sou amigo do
Secretário de Segurança, vou ligar pra ele e você vai se fuder, seu pobretão!
— Infelizmente cidadão, eu não tenho o número do Secretário de Segurança,
mas deixa ver aqui — se vira de novo para a viatura. — Ô, Tavares! Você tem aí
o número do Secretário de Segurança? O idoso diz que vai ligar para ele!
— Negativo.
— Pois é cidadão — volta o Heitor —, infelizmente não estamos tendo o
número do Secretário. Mas se o senhor se lembrar do nome do seu cuidador podemos
ajudar o cidadão a voltar pra casa.
— Cidadão o caralho! Já te falei que eu não sou cidadão porra nenhuma! Eu
tenho greencard! Vou ligar aqui, você
vai se fuder, seu praça de merda! — O velho está vermelho de raiva, pega o
celular, aperta uns botões e põe no viva- voz, alguém atende do outro lado.
— Buarque, pois não?
— Opa, Buarque! — Começa o senhor idoso mudando o tom da voz, agora
demonstrando alguma educação e sugerindo uma proximidade intimidadora com o Buarque
do telefone, puxando o calção para cima e com o olhar vitorioso em direção ao
soldado Heitor. O soldado continua com o ar entediado de quem já viu esse filme,
escrevendo a multa no talão. — O Secretário está aí?
— Sim senhor, o secretário sou eu, o Buarque.
— Não, não... — corrige sorridente o desembargador — o de Segurança.
— Desculpa cidadão, mas o senhor deseja falar com o secretário ou com o
segurança? O secretário sou eu mesmo, o Buarque, e o segurança que está no
plantão hoje é o Roque.
Silêncio constrangedor, e o Heitor meneia a cabeça concordando com o Buarque
porque a pergunta tinha mesmo ficado dúbia. O velho respira fundo pensando que esse
aspone de merda só pode estar de
sacanagem com ele.
— Quero falar com o Secretário de Segurança, por favor — tenta
educadamente num esforço derradeiro, se contendo, afinal, ele não é cidadão
porra nenhuma, é desembargador, cacete!
— E quem deseja falar?
— O desembargador, porra! Escuta rapaz, você sabe com quem você tá
falando? Porra! Eu sou desembargador!
— Cidadão, aí fica difícil... primeiro, o senhor não sabe com quem quer
falar; depois o senhor quer falar com o Secretário, mas nem sabe quem o senhor
é. E falando “porra” não vai dar, não tem como passar para o Secretário falando
palavra de baixo calão, compreende? Questão de protocolo. Deixa ver se posso
ajudar o senhor. O senhor conseguiu ligar sozinho ou tem alguém aí que ajudou o
senhor?
— Positivo operante! — Intervém o policial para desespero do
desembargador. — Soldado Heitor, bom dia, doutor Buarque.
— Soldado Heitor? Sério? Ah... vai dizer que você é o Heitor goleiro lá da
pelada do Tizinho?
— Esse mesmo, positivo. Você não seria o Buarque churrasqueiro, seria?
— Eu mesmo! Rapaz! Quanto tempo! — Explode de felicidade o Buarque
churrasqueiro. — Você nunca mais apareceu? O que foi? Prendendo muito
vagabundo?
— Positivo! E também machuquei a mão arrumando o telhado lá em casa, tou
dando um tempo. Deixa te falar... tem aqui com um idoso que não sabe quem é.
Ele insistiu em ligar aí.
— Idoso o cacete! — grita o desembargador, agora em francês, já que ele
fala várias línguas, mas não usa máscara na rua. — Analphabète!
— Eita! — fala Buarque. — O velho tá doidão — e solta uma gargalhada ao
telefone.
— Chama a porra do Secretário seu merde!
Ele me conhece! Eu sou poliglota! La
secrátaire me connaît! Diz que é o desembargador que foi no casamento da filha
dele! Eu falo francês, porra!
— Ô, Heitor! Vou chamar o Secretário ali pra ver se livro você dessa mala,
mas em troca você tem que prometer que vai voltar pra pelada no sábado.
— Combinado, volto sim. Abração!
Instantes de silêncio e o Heitor pisca um olho demonstrando cumplicidade para
o baixinho gordinho grisalho de calção caindo.
— Na verdade, a patroa invocou com o futebol e estou dando um tempo...
Uma voz sorridente e política aparece do outro lado da ligação
— Alô, bom dia!
— Bom dia, Secretário! Secretário, aqui quem fala é o desembargador...
— Desembargador? — O Secretário
interrompe, aparentemente empolgado.
— Isso, o que foi no casamento da sua filha, Secretário.
— Desembargador? Ô meu amigo! Há quanto tempo! Em que posso lhe ser útil?
— Pois é, Secretário, eu estou aqui com um soldado da PM analfabeto querendo
me dar uma multa porque eu estava dando uma caminhada na orla sem máscara. Só
tem eu na praia, Secretário. Ele não está entendendo.
— Ah... que coisa, mas o senhor não morre tão cedo, outro dia minha
esposa ainda falou no senhor. O desembargador Silveira faz tempo que não vem
aqui em casa...
— Não, Secretário, não é o desembargador Silveira não, é o outro
desembargador.
— Outro? Que outro? — O Secretário parece confuso.
— O outro, Secretário, o outro, porra! Então... o senhor lembrou? Você sabe
com quem está falando, Secretário?
— Desculpa, mas não estou lhe entendendo. Deixa eu falar com o policial,
por favor?
— Toma aqui — o velho entrega o celular que está no viva-voz para o
policial —, você vai se fuder agora, fala aí — diz confiante de que o
Secretário está com ele.
— Pois não? Soldado Heitor ao seu dispor. Em que posso ajudar?
—Soldado Heitor? Ué?! Eu conheço um soldado Heitor. Você não foi
segurança no casamento da Ritinha?
— Eu mesmo Secretário. Que coincidência boa reencontrar com o doutor!
— Ah... não acredito. Quanto tempo Heitor... como que você tá rapaz?
— Tou bem, obrigado. E dona Ritinha, Secretário? Tá feliz de casamento
novo? Aquela menina é um doce, Secretário, vale ouro.
— Vale ouro, sim... vale ouro — o Secretário parece orgulhoso da Ritinha.
— Escuta, meu querido, estou vendo que você está com um problemão aí com esse cidadão
que tá meio confuso, mas decreto é decreto, né? Faz o seguinte, passa a multa para
esse sujeito e se ele resistir, fazer o que? Pode recolher, combinado? E vê se
aparece outra hora para gente bater um samba!
— Pode deixar Secretário. O senhor por favor manda um abraço para dona
Dulce, diz que o tal de “Bife Borbulhom” que ela ensinou pra Joana tá fazendo
maior sucesso lá na comunidade, só que o pessoal chama de carne de panela de
gringo! — O Secretário solta uma gargalhada, manda um abraço para ele e outro para
a patroa e se despede. Heitor devolve o telefone última geração comprado em
Miami para o desembargador que está corado.
— Alô? Alô? Secretário... filho da puta, desligou.
— E então cidadão? — Recomeça o santo Heitor. — Estou aqui finalizando
sua multa...
O velho explode de novo.
— Cidadão o caralho! Pra você eu sou doutor, seu bosta!
— Eu sei que o senhor está meio confuso, mas tem que se decidir, ou é
desembargador ou médico, os dois fica difícil, assim a gente não vai poder
ajudar o senhor.
— Daqui a pouco vai dizer que é astronauta! — Grita de dentro da viatura
o Tavares.
— Tavares, por favor, não sacaneia o velhinho... o cara tá com
problema... — e recomeça. —Faz um esforço que o senhor lembra quem que cuida do
senhor, enquanto isso toma aqui sua multa...
O desembargador pega a multa, rasga, amassa e joga em cima do PM. Bem
nesse momento estaciona outra viatura que passava lentamente.
— Tudo certo aí, Heitor? — É o Tenente Rodrigues, manga curta dobrada
mostrando o bíceps, braço para fora da viatura tatuado com faca e caveira,
boina quebrada na testa, Ray-ban espelhado no bolso da camisa.
— Bom dia, Tenente. Tudo tranquilo? Estou aqui aplicando uma multa nesse
idoso aqui, sem máscara... o covid, sabe?
O gordinho sente uma pontada de esperança de enquadrar o soldado.
— Tenente, por favor, eu gostaria que o senhor intervisse aqui?
O Tenente desce da viatura ajeitando a boina e com uma cara severa. Olha
para os tênis novinhos do gordinho desembargador.
— Rasgou multa, é? Tá bem espertinho pra quem tá perdido, né?! História
suspeita essa Heitor... E esse tênis, amigo? Conseguiu onde? — Caminha
estufando o peito para cima do velho.
— Tênis? Que tênis? — O desembargador olha para os próprios pés com seu
tênis novinho que custou um salário mínimo e ele está estreando hoje no
calçadão da orla.
— Esse aí, cidadão — aponta para os tênis. — Tu não tá com cara de quem
pode comprar um tênis desse. Me fala. Conseguiu onde esse tênis, parceiro? Fala
aí que eu vou lá comprar um também. Tá barato? Fala aê — Tom ameaçador, se vira
para o Heitor. — Esse tênis tá estranho nesse gordinho, Heitor, esse tênis aí
tá com cara ser de gringo. Você identificou o cidadão?
— Negativo, Tenente. Ele diz que não sabe quem é e fica
perguntando pra mim se eu sei.
— Não é isso, Tenente — o desembargador tenta explicar, agora todo suado
—, o senhor não está entendendo, veja bem, olha pra mim. O senhor sabe com quem
o senhor está falando?
O Tenente olha de cima a baixo o baixinho esportista de gel no cabelo
grisalho, calção folgado e camiseta de dormir, com tênis zero bala.
— “Não tou entendendo?” — Altera a voz. — Não tou entendendo? Vou te
falar o que eu não tou entendendo: é um sujeito molambento desses com um tênis desse
daí? Pegou dum playboy, foi? Onde que tu arrumou esse tênis, fala aí senão a
coisa pode dar ruim pro teu lado, parceiro! — Ameaça, já segurando no braço roliço
do desembargador que agora está vermelho, suado e quase cagado.
— Calma, Tenente — intervém o Heitor pacificando. — Mexe com isso não, pode
deixar a situação comigo que está sob controle — afirma. — Pode deixar que eu tou me entendendo com o “desembargador”
(fala dando uma piscada de olho para o Tenente).
— Tá certo, Heitor. Tá certo, eu vou pegar leve porque tou indo atender
um 11340... — o Tenente, sério. — Mas se
o governador aí der muito trabalho pode recolher lá no abrigo da Prefeitura. Tá
cheio de gente importante lá, tem corregedor, presidente, vereador... ele vai
se sentir em casa.
O Tenente dá uma última olhada nos tênis e volta para a viatura.
— Mas se eu fosse você apertava essa história do tênis, aí tem! Copiou?
A viatura vai embora. Heitor terminou o trabalho, e com a paciência que
Deus lhe deu, finaliza a ocorrência.
— Bom, cidadão, eu vou liberar o senhor mesmo com o senhor tendo me chamado
de analfabeto, pobretão, praça de merda, mandado me fuder, ir à merda e ofender
minha mãe, Positivo?
O desembargador não diz nada, perdeu toda a coragem com a visão do braço
tatuado do Tenente e está com cara de guri cagado.
— Mas, cidadão... — Heitor chama com ar irônico no rosto — se o cidadão
precisar de ajuda pra ir pra casa, estamos aqui para servir. Tenha um ótimo dia
e não esqueça da máscara, tem um vírus por aí matando até desembargador, sabe?
Heitor vira as costas e volta para a viatura.
— Achei que você ia enquadrar esse. Amoleceu? — Pergunta o Tavares.
— Nada — afirma o Heitor. No fim das contas, acho que era só outro doidão.
Agora, veja você se um sujeito mal-educado e escroto daqueles pode algum dia ser
desembargador... bem que o Tenente suspeitou, é capaz mesmo de ter treta
naquele tênis.
[A1]
Um comentário:
Agora vou ficar com a pilha atrás da orelha:será que o tênis era um trampo?🤣🤣🤣
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