foto: Fala! Universidades
JOHNNY QUER MORRER AOS 27Johnny queria morrer jovem. Pelo menos era o que ele dizia para impressionar as meninas nas rodinhas da escola. Com 14 anos, declarava abertamente que morreria aos 27. Era assim que alguns dos maiores ícones culturais de gerações passadas haviam morrido, e para Johnny isso era “top”, palavras suas. Jimmy Hendrix, Kurt Cobain, Jim Morrison, Janes Joplin, Amy Winehouse tinham morrido aos 27.
— Quer melhor companhia que essa? — Ele dizia, mesmo sabendo
que Amy morreu com 28 anos, mas achando que um ano de diferença não desvalorizava
sua tese contanto que ninguém notasse a diferença.
Mas Johnny, que na verdade se chamava João Carlos e havia
adotado esse apelido porque achava João um nome sem glamour (Johnny não sabia o
que queria dizer glamour, mas tomei a liberdade de usar a palavra em detrimento
de um melhor entendimento de sua personalidade)... por essas e outras, posso afirmar que Johnny, aos 14, ainda não
tinha vivido quase nada. Nunca tinha desaparecido por três dias, não tinha
gastado mais do que ganhava, transado com duas pessoas ao mesmo tempo, batido o
carro, saído atrás de uma bateria de escola de samba, dormido dentro do carro
numa viagem improvisada, se perdido nas ruas sinuosas de um casco histórico em
um país onde se falava uma língua que parecia um sequencia de arrotos. Ainda não havia
frequentado a universidade e suas festinhas, fumado um baseado, dirigido um
carro que não era seu porque o dono estava muito bêbado, subornado um leão de
chácara para não pagar couvert num bordel, aliás, nem sequer tinha transado. Johnny
não sabia como é difícil passar uma camisa com colarinho, que a gente lava as
calças jeans com o zíper fechado, que o bife só pode ser virado uma vez para
não ficar duro, ou que Cervantes levou dez anos para escrever Dom Quixote e que
morreu um ano depois de publicar, em 1616.
— Nunca li um livro – dizia nas festinhas para impressionar.
E isso era verdade. Nunca tinha lido um livro até o final.
Ou achava as histórias entediantes, ou as palavras complicadas. Mas o que tinha
de ignorante em ler, tinha de rápido em abreviar palavras para trocar mensagens
de texto com os “parças”. Nunca ter lido um livro, apesar de impressionar a mim e a você por motivos óbvios, era valorizado no
grupo de amigos de Johnny.
Quando completou 25 anos, Johnny tinha feito muitas coisas
legais, e sua régua de longevidade se estendeu levemente.
— Não quero passar dos 40 – ele dizia agora. — Depois dos 40
a gente começa a perder o cabelo e ficar brocha. Vou morrer antes de ficar careca.
Agora ele fazia essa declaração nas rodas de bar sempre depois
que bebia. Os amigos, alguns ainda da época do “morrer aos 27”, como todos bons
amigos, haviam esquecido a promessa anterior, e passaram a admirar a ideia dele de morrer aos 40.
Afinal, aos 25, ficar brocha era praticamente estar morto. Mas aos 25, Johnny ainda não tinha se apaixonado de verdade. Eram amores passageiros, baseados em sexo
casual. Ele não sabia que as vezes não transar era tão legal quanto transar.
Desconhecia a emoção de comprar seu primeiro carro zero com o próprio salário,
como eram quentes os mares do Caribe, e como eram coloridas as ruas de
Cartagena. Ainda ignorava como fritar um bife, passar uma camisa com colarinho ou
lavar uma calça jeans. Desconhecia a maravilha de uma máquina de lavar louça.
Johnny vivia num mundo pequeno, cujas fronteiras se limitavam ao estacionamento do
aeroporto e as placas de “volte sempre” nas rodovias da saída da cidade.
Quando completou 38 anos, Johnny estava casado e com dois
meninos, trabalhando numa estatal e ganhando o suficiente para uma vida sem
sustos e sem progresso intelectual e sem cabelos em parte da cabeça. Havia descoberto que continuava viril, e seus
fantasmas da impotência que assombravam a idade se dissipavam muito lentamente. Nos
churrascos com outras famílias, depois de umas e outras, Johnny apresentava sua
nova teoria de longevidade.
— Melhor mesmo é morrer aos 60 de acidente aéreo. Sua
família ganha uma indenização e você não sente nada. Não quero ficar velho
dependendo dos outros.
Johnny, que agora achava que o apelido não combinava mais
com ele, pediu para os amigos para ser chamado de João Carlos. Imaginava que
aos 60 anos uma pessoa perdia totalmente o controle sobre si mesma e dependia totalmente dos
outros. Como ele ainda não lera nenhum livro até então (exceção de alguns
livros ilustrados para as crianças dormirem), não sabia que Saramago teve seu
sucesso reconhecido com Memorial de convento somente aos sessenta anos. Não
sabia que Roberto Marinho fundou o império da Rede Globo aos sessenta e um, nem
que Darwin teve seu trabalho difundido mundialmente aos 59. Ele não lia. Mas na
medida em que o tempo passou, e João Carlos viu seus meninos crescerem, surgiu
nele uma vontade de ver mais. Queria ver os filhos formados, namorando e
casando, tendo bons empregos, receber fotos das viagens de lugares distantes
que ele nunca conheceu. Assim, quando completou 59 anos, meio a contragosto, começou a aplicar um novo discurso.
— Viver além dos 75 não tem sentido. A gente só dá trabalho
e gasta o dinheiro dos outros.
Parece que João Carlos não aprendia nunca. Depois que conseguiu se aposentar, passava mais tempo com os netos. No verão, saía de férias com os filhos, esposas e crianças, ensinava os meninos a jogar cartas, pegar onda como um jacaré, fazer castelo de areia, desentocar mariscos no refluxo das ondas do mar. Ainda tinha força nas pernas, comia de tudo, bebia moderadamente e quando queria, conseguia carregar os meninos nos braços. Para além de uma surpresa, mesmo aos 70, ainda se sentia viril. E aquela vontade de partir aos 75 foi se atenuando e transformando, e quando João Carlos pensava nisso, se sentia traído por si mesmo. Olhava para um e outro dos netos e imaginava aquele ou aquela se formando, apresentando o namorado, dançando no casamento, e os bisnetos. Não, repetia para si mesmo, bisnetos não, vou dar muito trabalho.
O tempo ignorou os planos de João Carlos e ele foi vivendo para além dos 90. Viu os netos terem relacionamentos afetivos e os bisnetos chegarem. Dava pouco trabalho, não perdeu a mobilidade, conseguia ler, se atrapalhava com os controles remotos da TV, tentava desatinadamente seguir as redes sociais, fazia café, tomava banho sozinho. Viveu bem e firme para além dos 90, sempre achando que tinha vivido demais e devia ter vivido menos, mas sempre acreditando que hora de morrer era outra.
Morreu no quarto de hóspedes que ocupava
permanentemente na casa de sua bisneta preferida, que era casada com um
arquiteto em ascensão. Johnny estava tranquilo, quando foi se deitar e ainda de
mãos dadas na com ela na borda da cama, lembrou que havia algo que ela deveria
saber.
— Vou morrer aos 94 — ele disse, e se foi.
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